APRESENTAÇÃO
Com rara sabedoria, o autor nos leva a viajar no tempo, descrevendo a história da família Benevides Carneiro, sua genealogia desde a Europa da Idade Média, até estabelecer-se no Município de Caraúbas e de outros municípios do Alto Oeste Potiguar. Dos sonhos e sentimentos mais simples ao seu mais cruel desenlace, a vida de cada um é contada com a sensibilidade de quem gosta de compor, de cantar as belezas do Sertão, mesclando com poesia todo o contexto político e social de um enredo que se desenvolve no cerne de uma época em que o coronelismo imperava e a dignidade do sertanejo era medida pela força bruta.
Quem tiver o privilégio de ler este livro descobrirá que, em cada sertanejo, existe um pouco da coragem do Doutor Benevides, dos sonhos meninos do Valdetário, da vontade de servir aos pobres do Raimundo Benevides, da valentia do Antonino, da fé do Wantuil, da sensibilidade, resiliência e mansidão do Dudé, dos medos e revoltas dos justiceiros e injustiçados, da dor das mães Benevides Carneiro, mães de algozes e vítimas, que viram seus filhos assassinados, torturados e desvirtuados. Somente a elas cabe a capacidade de enxergar com outro olhar a Via Crucis do corpo e da alma dos meninos que pariu. Todo sertanejo também carrega em si o espírito de revanchismo no misticismo de Chica Cancão.
Terá também o privilégio de ter em mãos um rico referencial de pesquisa, compreendendo a história, a cultura, a política, a funcionalidade do sistema carcerário no Rio Grande do Norte, além dos valores vigentes no Sertão de outrora que, embora em menor proporção, perpassam a linha do tempo, manifestando-se nas gerações atuais, de forma a respingarem sobre as cabeças daqueles que, providos do sentimento de vingança, ainda não perceberam que a paz é estratégia fundamental de harmonia entre os povos.
Sertanejos ou não, a humanidade carrega em si uma propulsão à lucidez insana que estigmatiza, apaixona, que dá sentido à vida, destruindo a história para construir “novos rumos”, ou permanecendo aquém das mudanças, no mastigar constante do ressentimento. O fato é que somos todos loucos, agarrados à hipocrisia que nos diz lúcidos, retratada fielmente neste poema do autor:
Um louco contou pra um louco
Que um louco mandou contar
Que um louco matou um louco
Que um louco mandou matar. (Dudé)
Nestas páginas vivem os mais profundos conflitos do homem sertanejo. Quem brota do Sertão conhece bem as duas faces da natureza: ora se contorce entre os espinhos das juremas, do xique xique na poeira causticante, gritando a fome das estiagens; ora bate palmas com o cair da neblina que faz florir o mandacaru, enchendo os garranchos de folhas verdes e de frutos, enchendo a barriga dos caboclos, fazendo cantar os riachos que banham os lajedos quentes , numa teimosia divina que une sofrimento à satisfação, fracassos à vitórias, amor à ódio, misericórdia à crueldade, justiça à injustiça e paz à guerra.
O caleidoscópio humano tão bem descrito pelo autor reluz sua própria realidade. Porém, quanto menos ele reconhece sua vida em tudo que escreve, mais se aprofunda dentro de si mesmo, embrenhando-se nas raízes históricas da intelectualidade e da ignorância, no silêncio abissal de uma sociedade que constrói armadilhas com a língua, mas emudece, tornando-se sombra nas sombras da omissão, diante do grito injusto da justiça que ignora sentimentos e valores, adormecidos nas entrelinhas da violência.
Este livro nada mais é que a reafirmação da célebre expressão de Rosseau: “O homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe.”
Natal (RN), 23 de Agosto de 2010.
Fátima Abrantes
Professora e escritora